O Que Foi Prometido: O Compromisso do Estado com o Setor de Eventos
Em 2021, o Estado brasileiro fez uma promessa ao setor de eventos. Após o choque econômico causado pela pandemia da Covid-19, que paralisou atividades e colocou milhares de empresas à beira da falência, foi criado o Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos – o Perse.
O objetivo era claro: garantir a sobrevivência e a recuperação de um setor vital da economia. Para isso, o governo estabeleceu uma alíquota zero para tributos federais (IRPJ, CSLL, PIS e Cofins) por um período de cinco anos, até dezembro de 2026, para empresas devidamente enquadradas nos critérios da Lei 14.148/2021.
Essas regras criaram uma expectativa legítima. Empresários se reorganizaram, investiram, recontrataram funcionários e expandiram suas operações confiando na vigência plena do Perse por todo o período prometido. A confiança depositada nas regras do jogo estabelecidas por lei foi a base para decisões estratégicas, contratações e planejamento financeiro.
No entanto, em 2024, uma nova lei (Lei 14.859/2024) alterou as regras no meio do caminho. Estabeleceu um teto de R$ 15 bilhões para a renúncia fiscal, rompendo com o limite temporal que havia sido previamente fixado. Com isso, o benefício se encerra, conforme já anunciado pela Receita Federal em 24/03, antes de 2027, contrariando diretamente o compromisso assumido pelo próprio Estado com os empresários.
Essa mudança abrupta e imprevisível quebra a estabilidade jurídica essencial para qualquer ambiente de negócios saudável. Trata-se de um cenário grave, que precisa ser analisado sob a ótica jurídica e constitucional. O que está em jogo não é apenas um programa de incentivo fiscal, mas a confiança na palavra do Estado e na legalidade de seus atos.
O Artigo 178 do CTN e o Direito de Confiar
O Código Tributário Nacional (CTN), em seu artigo 178, protege os contribuintes ao estabelecer que isenções fiscais concedidas por prazo certo e em função de determinadas condições não podem ser revogadas ou modificadas antes do término desse prazo. A norma é clara: se o contribuinte cumpre as condições impostas por lei e o benefício foi dado por tempo determinado, ele tem o direito de usufruí-lo até o fim.
No caso do Perse, a lei foi instituída com prazo certo – cinco anos – e com condições específicas: pertencer ao setor de eventos e exercer uma atividade incluída nos códigos CNAEs listados por ato normativo. Esses elementos se enquadram perfeitamente na proteção oferecida pelo art. 178. Portanto, qualquer modificação que limite esse benefício antes de 2027 é ilegal, pois contraria uma regra legal expressa que protege o contribuinte.
É importante esclarecer que a “condição” mencionada no artigo 178 não precisa ser financeira. Não se exige que o contribuinte tenha feito um aporte em troca do benefício. Basta que ele tenha assumido obrigações jurídicas – como enquadrar-se em critérios legais e atuar em setores prejudicados pela pandemia – para que o direito se consolide.
Logo, ao impor um limite financeiro para extinguir o programa antes do prazo legal, o Estado rasga o artigo 178 do CTN e ignora o direito dos empresários de confiarem na palavra da própria lei. Essa violação não é apenas ilegal; é também imoral, pois rompe o pacto de confiança entre governo e contribuinte.
A Quebra da Segurança Jurídica e da Confiança Legítima
A segurança jurídica é um dos pilares do Estado de Direito. Significa que as regras não podem ser mudadas de forma abrupta, especialmente quando as pessoas organizaram suas vidas, seus negócios e seu futuro com base nessas regras. No caso do Perse, a revogação antecipada do benefício representa uma grave ruptura desse princípio.
Empresários de todo o país confiaram que o incentivo fiscal estaria disponível até 2027. Essa confiança legítima os levou a reabrir empresas, investir em estrutura, retomar eventos e contratar equipes. Muitos assinaram contratos de longo prazo, calcularam o preço de seus serviços considerando a carga tributária reduzida e contavam com essa vantagem para se manterem competitivos.
Com o fim abrupto do programa, essas empresas são penalizadas. É como se o governo tivesse puxado o tapete do setor, comprometendo a previsibilidade necessária para qualquer negócio. Isso não só prejudica economicamente as empresas, como também mina a credibilidade do Estado.
Além disso, há um agravante: a própria Receita Federal reconheceu que não há transparência no cálculo do teto de R$ 15 bilhões. Contribuintes que obtiveram decisões judiciais favoráveis para manter o Perse, por exemplo, foram contabilizados no montante usado para encerrar o benefício. Isso é um erro técnico e legal, que contribui ainda mais para o clima de insegurança e incerteza.
O Artigo 105 do CTN e a Ilegalidade da Retroatividade
Outro ponto de ilegalidade gritante está no artigo 105 do CTN, que proíbe que normas tributárias restritivas de direitos tenham efeitos retroativos. Em outras palavras, uma nova regra que limita ou cancela um benefício não pode atingir fatos passados, nem alcançar situações já consolidadas sob a legislação anterior.
A Lei 14.859/2024, que criou o teto de R$ 15 bilhões, foi publicada em maio de 2024, mas estabeleceu que os valores passariam a ser contabilizados a partir de abril do mesmo ano. Isso viola expressamente o artigo 105 do CTN, pois retroage para restringir direitos. Nenhuma empresa pode ser penalizada por algo que foi feito antes da nova lei existir.
Essa retroatividade fere também a lógica jurídica mais básica: a de que as leis só produzem efeitos para o futuro. Ainda mais quando causam prejuízos ou restringem direitos adquiridos. No caso do Perse, essa violação se soma à quebra da segurança jurídica e transforma o que era um incentivo em uma armadilha para milhares de empresários.
Ao agir assim, o Estado passa uma mensagem perigosa: de que seus compromissos legais não são confiáveis. Isso enfraquece o tecido institucional do país e desestimula qualquer investimento de médio e longo prazo. Afinal, quem investe em um país onde as regras mudam a qualquer momento, sem aviso prévio e com efeitos retroativos?
Reflexões Finais: A Defesa Intransigente do Direito à Estabilidade
Como tributarista e sócio da Reduza Tributos, que atua diariamente ao lado de empresas que lutam para se manter vivas no cenário brasileiro, vejo com profunda preocupação o fim antecipado do Perse. Esta não é apenas uma questão técnica ou tributária: é uma violação de princípios fundamentais que sustentam a confiança no Estado e a própria ordem jurídica.
A mensagem que fica é de instabilidade. O empresário, que deveria ser protegido por normas claras e previsíveis, se vê vítima de mudanças repentinas, sem qualquer previsibilidade, sem aviso razoável e com efeitos devastadores. Isso desestimula o empreendedorismo, prejudica a economia e compromete empregos e renda.
É por isso que defendo, com convicção, que o fim do Perse nos termos atuais é ilegal e inconstitucional. Ele afronta o artigo 178 do CTN, ao revogar um benefício concedido por prazo certo e sob condições específicas. Viola o artigo 105 do CTN, ao aplicar regras novas a fatos passados. E quebra a segurança jurídica, pilar essencial para qualquer democracia.
Não se trata de proteger privilégios, mas sim de garantir justiça. As empresas que se organizaram sob a promessa legal de um benefício fiscal até 2027 devem ser respeitadas. O Estado deve ser coerente com suas próprias leis. E, se quiser mudar de rota, que o faça com planejamento, com transição e com respeito aos direitos adquiridos.
A Reduza Tributos seguirá ao lado das empresas, lutando judicialmente e politicamente pela manutenção dos benefícios do Perse até 2027, conforme previsto originalmente. A confiança no Estado precisa ser restaurada. E isso só será possível quando as leis forem tratadas com a seriedade que merecem. Justiça fiscal é, antes de tudo, respeito ao que foi prometido.