A Justiça brasileira é viva, complexa e em constante transformação. Mas, como todo organismo jurídico em movimento, suas decisões precisam respeitar fronteiras. E quando essas fronteiras são ultrapassadas, surgem dúvidas — e, pior ainda, inseguranças. É o que está acontecendo com a aplicação indevida do Tema 677 do STJ no Direito Tributário.
O que é o Tema 677?
Em 2014, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça (STJ), ao julgar o Recurso Especial nº 1.348.640/RS, firmou uma tese aparentemente clara: o depósito judicial integral ou parcial do valor da condenação extinguia a obrigação do devedor nos limites da quantia depositada.
A lógica era simples: se o devedor deposita, ainda que judicialmente, o valor da dívida, ele deixa de estar em mora. E, portanto, não deve arcar com juros e correção monetária a partir desse momento. Essa tese beneficiava o devedor diligente, que mesmo contestando a cobrança, tomava medidas para garantir o pagamento.
Porém, o tempo passou — e com ele vieram decisões contraditórias, julgados confusos e insegurança jurídica. O próprio STJ começou a decidir em sentido oposto, afirmando que depósitos judiciais, mesmo voluntários, não necessariamente extinguiam a mora.
A revisão da tese: insegurança e ausência de modulação
Diante do impasse, o STJ decidiu revisar a tese em 2020, culminando em nova redação do Tema 677 em 2022. Por estreita maioria (7 votos a 6), o Tribunal passou a entender que o depósito judicial — seja ele decorrente de penhora ou feito em garantia — não afasta a incidência de correção monetária nem de juros de mora até o efetivo levantamento pelo credor.
E o problema ficou ainda maior: a decisão não foi modulada no tempo. Isso significa que mesmo quem seguiu fielmente a orientação anterior, acreditando na segurança jurídica que os precedentes repetitivos deveriam oferecer, agora pode ser surpreendido com encargos retroativos.
O princípio da modulação de efeitos (previsto nos §§ 3º a 5º do art. 927 do CPC) visa proteger o jurisdicionado da instabilidade jurídica. Afinal, segurança jurídica não é um favor: é um direito constitucional. E a modulação seria a forma correta de respeitar quem agiu de boa-fé.
Depósito judicial: um instrumento de garantia, não de punição
Historicamente, o depósito judicial serve para garantir o juízo, dar tranquilidade à parte contrária e suspender os efeitos da mora. A própria legislação já reconhecia isso: o art. 904, I, do CPC permite o cumprimento da obrigação com base no valor depositado; o Código Civil (arts. 394 e 395) também trata da cessação da mora com o pagamento ou garantia da dívida.
Inclusive, o STJ editou duas súmulas sobre o tema:
- Súmula 179: “O estabelecimento de crédito que recebe dinheiro, em depósito judicial, responde pelo pagamento da correção monetária relativa aos valores recolhidos.”
- Súmula 271: dispensa ação específica contra o banco depositário para atualização dos valores.
Ou seja, o entendimento anterior fazia sentido: quem deposita para cumprir ou garantir a dívida não pode ser tratado como inadimplente.
Mas o que tudo isso tem a ver com o Direito Tributário?
Tudo. E, ao mesmo tempo, nada.
Embora a nova redação do Tema 677 tenha sido firmada em ação cível de natureza indenizatória, muitos juízes e procuradores têm tentado aplicá-la nas execuções fiscais. Isso é um erro técnico grave.
A execução fiscal, por sua natureza, segue regras próprias, previstas na Lei de Execução Fiscal (Lei nº 6.830/80). E o crédito em jogo não é privado — é tributário. Por isso, a legislação aplicável é do Direito Público, com base no Código Tributário Nacional (CTN).
O próprio art. 110 do CTN impede que normas de direito privado modifiquem o conteúdo de institutos, conceitos e formas utilizados na legislação tributária. Logo, decisões tomadas com base no CPC ou no Código Civil não podem ser simplesmente transplantadas para o campo tributário.
Depósito em execuções fiscais: outra lógica
Na execução fiscal, quando o contribuinte realiza depósito judicial em dinheiro — seja voluntário ou por meio de penhora —, a própria Lei de Execução Fiscal (art. 9º, §§ 3º e 4º e art. 11, § 2º) estabelece que a obrigação fica suspensa, e a instituição financeira passa a ser responsável pela atualização do valor.
Ou seja, a obrigação tributária, nos limites do valor depositado, deixa de gerar mora. E não há razão jurídica para se aplicar a lógica do Tema 677, que sequer foi construído com base em princípios e dispositivos tributários.
Além disso, não há nenhuma decisão do STJ que afirme, de forma categórica, que o novo entendimento do Tema 677 se estende à esfera fiscal. Pelo contrário: sua inaplicabilidade ao Direito Tributário é uma consequência direta da separação entre Direito Privado e Direito Público.
Conclusão: segurança jurídica e respeito à legalidade
O novo entendimento do Tema 677 do STJ pode até ser aceito nas ações cíveis. Mas aplicá-lo ao Direito Tributário é violar princípios básicos como legalidade, tipicidade e autonomia normativa do CTN.
É papel dos advogados tributaristas, juízes e operadores do direito zelar pela correta aplicação dos precedentes e garantir que decisões construídas com base no Direito Civil não invadam de forma indevida o campo tributário.
Em matéria tributária, segurança jurídica e respeito às normas específicas não são luxo. São pilares. E pilares, como sabemos, não se pode mover sem colocar tudo abaixo.